quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Tenho uma inveja enorme (sim, também invejo, sou humana) dos tertuliantes do “Em contacto, acho que é assim que se chama o programa, aquele que tem o Dominó. Eles são úteis, são importantes, aparecem na televisão, falam de coisas e as pessoas ouvem-nos, atentamente, perdem o seu tempo a ouvi-los e a assimilar o que eles dizem, reflectem sobre isso e comentam. E os tertuliantes sabem disso, e então vivem tranquilos, porque se sentem úteis e ocupados.

À roda

Já cansa! Não. Não dá mais. De tanto bufar pelas orelhas expludo!
Eu sei que disse que chegando a esta idade já nada dói nem mói. Parece que menti, a mim própria, o que só mostra como sou um serzinho muito inconstante. É verdade que já nem tudo afecta a paciência e a estabilidade, mas, quando se bate sempre na mesma tecla, das duas uma: ou encrava, ou salta fora. Como eu não sou de encravar resta-me a segunda hipótese.
Não dá mais para continuar a fazer o que me têm mandado fazer. Já tenho aguentado durante muito tempo, e isso só aconteceu porque me fui automatizando, mecanizando, como uma operária na fábrica: põem-me o trapo à frente e eu coso sem porquês (uma tendência muito habitual entre nós, animais ditos racionais). Mas não, eu não quero ser nenhum hamsterzinho que corre na roda porque me parece que ela gira independentemente da minha vontade, quando, na verdade, sou eu que a ponho a rodar.
Têm-me obrigado, aliás, tenho-me obrigado, a dedicar o meu tempo às mais inúteis tarefas que nunca me hão de servir para coisa alguma. Puseram-me a estudar, imagine-se, o conforto acústico de um edifício, que implica calcular os níveis de isolamento sonoro dos materiais, os seus coeficientes de absorção sonora, a determinação do tempo de reverberação (coisas que não vou especificar uma vez que já perdi tempo bastante com elas). Não é que seja tarefa complicada, não é. O que me maça são os bocados da minha tão milagrosa vidinha que estão a ser desperdiçados nestas inutilidades. São inutilidades sim senhor, ninguém me venha dizer, todo armado em importante, que não, que eu até lhe respondo que a arquitectura é toda ela inútil.
Tudo bem, nós as pessoas precisamos de tocas de abrigo, queremos conforto, viver cómodos, vá lá. E a arquitectura não é só isso, é também um dos manifestos culturais da humanidade, pronto. Mas será assim tão, tão importante? Será disso que a gente mais precisa? Ela parece-me tão frágil quanto nós somos. E, apesar de tudo, deve haver mais almas que gostem de oferecer o seu tempo a essas causas (será que existe mesmo alguém que se interesse por cálculos de níveis de isolamento sonoro?). Eu não! Coitados deles. Como é que vão ter tempo de ver o mundo? Terão tempo para existir, ou para saber sequer que estão a existir? Talvez não, mas depois de idos há de perdurar um fantástico auditório com uma perfeita resolução acústica e eu não deixo nada. E que é que isso interessa? O que fica, fica, e nós acabamos acabadinhos de forma igual.
Pois, mas a verdade é que por muito que não queira, estou metida nisto, e o que me chateia mais é que eu não escolhi isto para mim, como é que eu vim aqui parar? Foi com certeza a minha pressa. A mania de ter que estar sempre em movimento, de não poder parar um bocado para pensar e decidir. Começo a ficar com medo de que será sempre assim, que hei-de ser sempre um hamster à roda, feita estúpida, gerando a minha própria prisão. Como é que eu saio disto agora? Digo aos meus pais que o dinheiro que me deram durante quatro anos foi parar ao lixo? Enfim, aprisionei-me. E venha mais uma voltinha de coeficientes de absorção.

Vacinas em dia

Tenho vindo a reparar que estou a ficar velha. Não me baseio, para dizer isto, na cara acabada que tenho vindo a adquirir, nem no peso crescente de cada ressaca de domingo. Digo isto porque parece que tenho vindo a ser vacinada contra muita coisa, sem querer. É isso mesmo, estas já bastantes voltas ao sol que deu a minha cabeça, independentemente da minha vontade, vacinaram-me. Desde que comecei a ser um animal minimamente pensante e me fui apercebendo da minha condição, todas as situações dramáticas e complicadas que foram surgindo eram, para mim dramáticas e complicadas. O que corria menos bem eu achava que corria menos bem. Se alguma coisa me enfurecia, eu enfurecia-me, se alguém me tratasse mal eu sentia-me mal tratada e se houvesse alguma coisa de fazer chorar eu chorava. Mas agora já não há situações tão dramáticas e complicadas como isso. Quer dizer, dizem que há, só que para mim já não. E as coisas agora não correm mal, ou melhor, nunca correram pior, mas como começo a ficar habituada, já não correm mal de todo. Agora aguenta-se de tudo. Leva-se com tudo em cima e continua-se bem. Já não há paciência para me dar ao trabalho de me incomodar.
Havia feito tantos planos, acreditava que um dia havia de fazer coisas fantásticas das quais me ia orgulhar e dar orgulho aos outros, tinha sonhos que parecia terem concretização inevitável, blá, blá, blá, as tretas do costume. Se perdia o meu tempo em momentos que não me interessavam ou que não me levariam a lado nenhum sentia vontade de rastejar, se faltava a um dever que achava, ou que me diziam, que devia ser cumprido batia com a cabeça nas paredes. Trincava-me toda se me critivavam por algo mal feito. Apetecia-me arrancar os olhos quando não queria ver que estava a agir mal.
Agora, não há crises. Se o tempo for à vida que se lixe. Sou capaz de ficar a ouvir a Lina da mercearia a contar histórias com palavras estranhas, continuando a sorrir e a abanar a cabeça dizendo que sim. Aguento nas calmas duas horas no auditório a ver o prof a fazer gatafunhos de fórmulas de cálculo da resistência térmica dos materiais.
Agora, não há crises. Ouço à vontade o prof de projecto a dizer-me, com um sorrisinho para não me machucar tanto, que, no fundo sou uma burra e que não percebo nadinha de nada. Chumbem-me as vezes que for preciso. Digam-me que não valho nada, ou não, não precisam de dizer porque eu sei. Digam mas não se preocupem pois por mim, tudo bem. Apontem-me o dedo se eu fizer asneira, riem-se se me acharem ridícula, atirem-me pedras se quiserem que eu deixo. Não faz mal nenhum mesmo. Enxovalhem-me! Julguem-me! “Olha, se não fazes um esforçozinho chumbas a tudo. Se não trabalhares como é que vai ser? Já viste bem? Que vai ser de ti? Assim não prestas, vais acabar na miséria, as pessoam deixam de gostar de ti. Não tens vergonha? Eu a ti nunca nunca mais aparecia à frente de ninguém. Estás a perder o teu tempo…Tem cuidado com o que fazes. Tem cuidado com o que dizes. Não hás de ser ninguém. Não vás! Não fiques! Não vales nada. Já viste o que fizeste? Desiludiste. Não tem desculpa. É um escandalo! Ai Jesus!”
Fiz asneira? Ai Jesus! Que é que eu faço?!
Visto o casaco. Aperto-o até ao pescoço que está frio lá fora, meto as mãos nos bolsos e perco-me por aí, a assobiar ao vento.