sábado, 27 de outubro de 2007

Há dias assim. Dias que nunca mais passam, dias que não valem a pena, que poderiam nem sequer ter existido porque não se sentirá falta deles. São dias em que não somos. Estamos só neles porque sim, porque não temos escolha, estamos neles mas não somos neles. Não serão bem dias tristes, não são dias tristes nem felizes, são apenas dias em que não vivemos, passamos por eles, e como tal, se não os vivemos não podemos atribuir-lhes qualquer tipo de valor, tanto a alegria como a tristeza são coisas vividas que não cabem nestes dias não vividos.
Hoje é um destes dias. Descrevo-o. Estou quase só, eu e o cat Stevens, estendidos no sofá vermelho da casa do porto. Tenho os pés frios. Pela janela vejo um pedaço de logradouro e um céu timidamente tingido pelo sol já baixo de fins de Outubro. A tarde já vai a meio, dentro de momentos há de escurecer e eu acabei de acordar. As aulas já foram para o tecto. Não fui porque não fui. Não saí à rua, nem me apeteceu almoçar em condições. O Stevens dorme, a televisão está ligada sem som nas tardes da Júlia. Toca Kruder&Dorfmeister no meu pc. Não há vontades, não há energia para fazer coisa alguma, nem sequer para pensar, o único pensamento que chega é o da minha condição neste preciso momento. Não me chegam pensamentos de memórias felizes que me fizessem dançar, nem de como poderia transformar o dia de hoje num mais útil, nem sequer penso em coisas que me poderiam enfurecer, que me poderiam levar ao desejo de espancar alguém, ou em coisas que me deixariam a chorar e a sentir-me miserável. Não há sentimentos de culpa ou de orgulho. Nada, não penso em nada, e nem está tudo bem nem está tudo mal. Apenas se está, e está-se só porque é inevitável, porque o tempo é que manda e temos que passar com ele de alguma forma. Amanhã o dia já não será o de hoje, será o de amanhã. E este dia não fará nunca parte das minhas memórias futuras porque para mim ele não existiu, ou melhor, não existe, estou ainda dentro dele. Resta-me saber se fui eu que me tornei prisioneira deste dia assim ou se existem mesmo dias assim: dias que não existem. Não que não existam em si, mas que não existem para mim.

Há dias em que me apetece andar de carro. Gosto de andar de carro para não permanecer sempre no mesmo sítio, gosto de ver o mundo a passar (que no fundo sou eu que passo por ele mas a percepção é a outra), seja ele como for, feio, bonito, claro, escuro, simples ou confuso, goste ou não do espaço. Gosto da estrada, particularmente da auto-estrada, que eleva ao máximo o papel da estrada: o de levar-nos a qualquer lado, o de não nos permitir estar num momento em sítio nenhum mas ao mesmo tempo em todos os sítios. É bom não estar parado. É bom não pertencer a um sítio só, mas pertencer a todo o lado. Quando paramos pertencemos ao espaço nesse momento e isso limita-nos. Naquele momento,só há aquilo e mais nada. É bom não ser daqui ou dali, é bom ser de todo o lado. Enquanto estamos em movimento podemos ser de todo o lado, e se pararmos somos só dali. Enquanto não estamos em nenhum lugar específico, podemos estar com todos os lugares e também connosco. Isso é bom. Gostava de ser nómada.

Há dias em que acordo com uma imagem muito nítida na cabeça: estou com uma arma de pressão nos braços, posiciono-me ligeiramente de lado, tenho um olho fechado e o outro a tentar alinhar visualmente duas marcas em sítios diferentes do aparelho que tenho nas mãos com um terceiro ponto. Este terceiro ponto, o alvo, é a única coisa que varia de todas as vezes que imagino a situação.
Não acredito, com isto, que tenha instintos homicidas. Até porque quando tenho estas visualizações, depois de mirado o alvo, o que vejo a seguir é apenas um chumbinho cravado numa perna de alguém, mais precisamente numa canela, e depois esse alguém limita-se a gemer de dor (sem ver a sua vida em risco) e eu delicio-me com uma gargalhada que me deixa numa sensação suprema de paz. Isto é paradoxal, a imagem que eu tenho, uma imagem sem dúvida de ódio e violência, que se associa directamente à paz. Será a paz um sentimento egoísta? Será preciso chamar a violência para nos vir trazer a paz? Eu não sou má pessoa, e bem sei que não sou a única a imaginar estas coisas, e se as imagino com uma vontade enorme de as concretizar é porque há uma causa para isso que não dependeu só de mim, que é bem capaz de ter dependido de tudo menos de mim mas que a certa altura se relacionou comigo, e isto acaba por ser uma reacção normalíssima a uma circunstância que se terá criado. Por isso sim, se calhar quando se procura paz, a nossa individual ou não, será preciso passar pelo odio e a violência porque antes houve alguém que a veio roubar.

Há dias em que me apetece trabalhar. Não, isto é mentira, mas fica bem dizê-lo. Não é que eu seja preguiçosa ou um ser tão inútil que não devia ter vindo cá para fora, como se costuma pensar sobre as pessoas que não gostam de trabalhar. O que acontece é que quando faço, produzo alguma coisa porque gosto não lhe chamo trabalhar, este termo tem uma conotaçao demasiado negativa e por isso reservo-o para me referir áquilo que faço quando não estou a gostar de o fazer. Então, de trabalhar, não gosto nem me apetece nunca, mas é o que eu faço a maior parte das vezes, e muito boa gente também.
Coitados de nós, que temos que trabalhar.

Há dias em que me apetece subir a montanha mais alta que encontrar, que me apetece chegar mais perto da lua. Se pudesse voava, mas isso é um sonho que já não se tem na minha idade. É que lá para cima não há chatos, nem povo doudo. Não há quem nos mande preocupar-nos vinte e quatro horas do dia com a única coisa que não nos diz nada, não há quem ache que calças verdes não se usam, ou que um atilho atado ao pulso não é coisa de gente. Não há quem faça um drama por ter que decidir entre que carro há de escolher para causar boa impressão, ou quem duvide das capacidades de alguém só porque não foi cumprido um prazo. Lá não há prazos, nem ninguém para os estabelecer. Não há ninguém para olhar para a tua cara, para ver se vieste maquilhada ou julgar-te por nem sequer cheirares a perfume, ou porque não tens roupa de marca e bem conjugada no teu corpo. Ou porque ficaste sem dinheiro no multibanco e tiveste que pedir emprestado. Lá não precisas das unhas arranjadas e podes-te esquecer do desodorizante porque não estão lá os doudos que te vão olhar de lado por cheirares mal. Não precisas de saber falar para pareceres bem, porque não estará lá ninguém para avaliar as tuas palavras. Lá estaras tu, apenas tu, como és, idependentemente do que possas achar que és porque os outros doudos já te haviam posto um rótulo. Só lá, onde não está ninguém é que não há doudos. E até tu te tornas doudo quando desces depois cá abaixo.

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